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UMA CRISE DE MÚLTIPLOS EFEITOS: O IMPACTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NA SEGURANÇA PÚBLICA

Passado mais de um ano do início da pandemia de covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, tornou-se evidente que os efeitos provocados pela crise sanitária extrapolam em muito as características somáticas da doença e atingem, de forma contundente, as esferas psicológica e social da população.


O vírus – potencialmente letal, em especial para a parcela mais vulnerável da sociedade, e altamente contagioso – modificou a dinâmica das relações interpessoais e, principalmente, profissionais, em razão das medidas de contenção e enfrentamento adotadas por todo o mundo, as quais culminaram no confinamento de boa parte da população dentro de suas próprias casas.


A crise de saúde – agora também econômica e social – foi acompanhada por uma crescente nos índices de violência. Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 , publicação promovida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), somente no primeiro semestre do ano passado, as Mortes Violentas Intencionais (MVI) tiveram um aumento de 7,1%, contrariando as tendências de queda observadas entre os anos de 2018 e 2019.


Nesse contexto, é importante enfatizar que, assim como no campo das ciências biológicas ainda se discute com certo nível de incerteza acerca do comportamento do vírus e da sua reação a determinados tipos de medicamentos, na esfera das ciências sociais, os impactos da pandemia na segurança pública ainda representam uma zona parcialmente cinzenta.


As hipóteses acerca da influência das medidas de distanciamento social no avanço da violência e da criminalidade só se confirmarão (ou não) com o avançar do tempo e dos estudos dedicados ao acompanhamento de tal fenômeno, mediante a análise de diversos indicadores, tais como a incidência de subnotificação das ocorrências, o impacto das políticas regionais e locais adotadas para o setor de segurança e até mesmo a influência de fatores anteriores ao surgimento do vírus, que ainda se desdobram na realidade social.


Nesse sentido, é interessante observar que, para além dos números gerais, desde já, o aumento do convívio doméstico parece impactar na configuração dos índices de violência contra a mulher, conforme demonstrado pelo relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” , publicado na última segunda-feira (7), fruto de uma iniciativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), do Instituto Datafolha e da Uber.


A pesquisa, que já está na terceira edição, havia sido realizada nos anos de 2017 e 2019, e contou com a participação de 2.079 entrevistados, sendo 1.093 mulheres, das quais 879 participaram do módulo de autopreenchimento, dedicado à análise de vitimização.


Em sua parte geral, destinada à oitiva de homens e mulheres, a pesquisa demonstrou que, em comparação com as edições anteriores, menos pessoas afirmaram ter presenciado mulheres expostas a situações de violência. No entanto, o número ainda é alarmante, representando 51,1% da amostra total de entrevistados.


No âmbito da pesquisa de vitimização – dedicada exclusivamente às mulheres – demonstrou-se uma constante em relação ao ano de 2019 (27,4%), haja vista que, ainda que em um percentual inferior (24,4%), os números ficaram dentro da margem de erro esperada.


Não obstante os resultados da pesquisa não indicarem aumento na violência contra a mulher para o período, considerado o percentual de vítimas, os indicadores demonstram que ocorreram diferenças no que tange ao local onde a violência ocorreu e à autoria.


Somente no âmbito do local da violência, 48,8% das entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de agressão dentro de casa, contra 42% da pesquisa realizada no ano de 2019. Por outro lado, as agressões na rua, que indicavam um percentual de 29,1% dois anos atrás, caíram para 19,9%.


Além disso, houve uma queda nos relatos de agressões cometidas por desconhecidos na rua, em detrimento do aumento na autoria de violência por parte de cônjuges, companheiros e namorados, por exemplo.


Assim, é possível inferir, de forma extremamente razoável, a existência de causalidade entre o aumento do convívio doméstico e a violência contra as mulheres, problemática agravada pela pandemia de coronavírus.


Para além dos desgastes inerentes às relações familiares, os impactos negativos da convivência doméstica são fruto, também, da deficiente independência financeira de muitas mulheres.


Conforme demonstrado pela pesquisa do Fórum, 61,8% das mulheres vitimadas pela violência no período haviam experimentado redução da renda familiar – o que coloca em xeque a importância da criação e do fomento de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico da população, enquanto medida de segurança pública.


Desta forma, o combate à violência contra a mulher – assim como aos múltiplos efeitos da crise instaurada pelo coronavírus – não dependerá de uma solução única, mas do ataque coordenado a diversas fontes.


Raul Jungmann – Coordenador do Observatório de Segurança Pública e Cidadania da América do Sul (OSPC). Foi Ministro do Desenvolvimento Agrário, Ministro Extraordinário de Política Fundiária, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública.


Aline Houston – Membro do Observatório de Segurança Pública e Cidadania da América do Sul (OSPC). Advogada e Pós-graduanda em Direito Público pela PUC/RS. Analista de projetos de desenvolvimento e cooperação internacional da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), com experiência na área de políticas públicas desde o ano de 2017.


i - Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-02/servicos-acumulam-queda-de-78-no-pais-revela-pesquisa-do-ibge.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

ii - Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/home-office-foi-adotado-por-46-das-empresas-durante-pandemia#:~:text=O%20trabalho%20em%20casa%20foi,atuam%20em%20todo%20o%20Brasil.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

iii - Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-01/ibge-inflacao-de-2020-tem-alta-de-452-maior-desde-2016#:~:text=A%20infla%C3%A7%C3%A3o%20fechou%20o%20ano,IBGE%2C%20no%20Rio%20de%20Janeiro.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

iv - Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

v - Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

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